quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Os Canudos do José Celso

Uma montagem teatral do José Celso Martinez Correa é sempre um evento de natureza ímpar. No primeiro dia, quando saí do Espaço Cultural da Cidadania contra a Fome, onde a peça foi apresentada aqui no Rio de Janeiro, fiquei pensando sobre a montagem que variava desde o teatrão clássico até uma ópera moderna (o comentarista do The Globe, falava de ópera bufa) com fortes influências das montagens carnavalescas do Rio de Janeiro.

Já tinha visto várias montagens do Zé Celso. Todas fantásticas. A primeira, "Os pequenos burgueses" encenada no Teatro da Maison de France, foi para mim uma revelação. Conhecia a mais famosa obra de Gorki "A Mãe" e a revelação daquele drama da pequena burguesia russa, encurralada pelo medo da revolução e a opressão do czarismo serviu de paralelo para analisar vários ambientes tanto de minha família, que nem tão pequeno-burguesa assim era, como de amigos de escola. Acompanhei outras peças: Galileu Galilei, surpreendente que me fez tomar contato com Brecht, logo depois encenado com a peça "A Selva das Cidades".

Assim, depois de ver encenado o "Homem I", lembrei de Oscar Niemeyer, comentando a sua obra, em particular Brasília. "Você pode não gostar da minha arquitetura, mas uma coisa é certa, você nunca terá visto nada parecido". Assim como Niemeyer na arquitetura, o teatro para Zé Celso é invenção. É fazer diferente. Quem poderia imaginar que o texto pesado de Euclides da Cunha pudesse ser transposto com um viés tão moderno para o teatro? A montagem não linear traça com momentos de brilhantismo o paralelismo entre os acontecimentos completamente inundados tanto pela história oficial, com a sua verborragia inútil, quanto fisicamente, com o alagamento da região de canudos para a construção de uma represa.

A peça deve ser vista sob múltiplos ângulos. Como uma grande alegoria da História. Como não pensar em Canudos sem pensar em Guernica? Em Kosovo? Em Bagdad? Em Darfur? Estes acontecimentos ocorridos em momentos da história separados no tempo encontram-se na memória, nas lembranças e na comparação dos relatos das suas vítimas, dos registros históricos. Como se o espectro de Canudos persistisse, ainda que não tivesse restado um sobrevivente para contar a história. Mas, a história é recontada diariamente nos diferentes massacres, na violência perpetrada sobre as populações indefesas, presas fáceis, sejam do banditismo, dos fundamentalismos, e da violência policial. É como se houvesse um terrível coro das vítimas.

Os Sertões conforme recontado/relido por Zé Celso nos traz a confluência de fatos históricos que se encontra em outro plano. O plano da memória? O plano dos nossos medos? Os Sertões de Zé Celso reverberam nas Veredas de Guimarães. Ao falar sobre o Homem, sobre este Homem brasileiro, que interessante a plasticidade que assumem os corpos "imperfeitos", misturas de várias etnias. E que interessante a interpretação feita: pelo fato de não se definir em uma raça, somos ao mesmo tempo a soma de todas elas, mas também a sua superação dialética. Aquela dialética reversa que explica e captura o movimento detectado pelos modernistas antropofágicos de sermos a soma de todos os erros e nesta integração, a sua superação dialética. Esta superação que faz uma cultura nacional multicultural, antropofagicamente aberta a todas as outras. Interessante o tributo a Oswald de Andrade na referência à deglutição do Bispo Sardinha, como o início na nossa própria era.

Tal como Adriana Calcanhoto se reportava ao episódio de "As bacantes", vamos comer Zé Celso, vamos comê-lo cru!